Joseense Victor França permaneceu duas semanas na Ucrânia. Ele foi até o país do leste europeu, que segue em guerra contra a Rússia, entender e estudar o trágico conflito militar. “Apesar da necessária solidariedade para com o povo ucraniano, ambos os países têm perdido também características democráticas com o conflito”, conclui França
Um dos maiores desafios da tentativa de se compreender um acontecimento com grande envergadura, é o de se descolar das narrativas que os meios de comunicação por vezes acometem o imaginário social. Cria-se uma conjuntura onde a veracidade repousa tão somente nas notícias que recebemos em nossos dispositivos.
Pois bem, depois de fazer a experiência de viver in loco o conflito entre Israel e Palestina e de examinar presencialmente a crise humanitária que se passa na Venezuela, chegou a vez de analisar de perto o conflito na Ucrânia que persiste há mais de um ano com o país vizinho.
Chegar na Ucrânia, atualmente, demanda paciência e um planejamento minucioso. O deslocamento somente pode ser feito de carro ou de trem. Optei pela segunda possibilidade. Mas adquirir o bilhete ferroviário demandou destreza e agilidade: os bilhetes são liberados vinte dias antes da data pretendida. E o site da empresa não estava colaborando em permitir a navegação de um dispositivo localizado no Brasil; o que fez necessário uma simulação de servidor, como se eu estivesse usando uma rede na Lituânia. Chegado o dia de fazer a compra, o site não estava aceitando uma compra internacional. O que gerou ansiedade uma vez que, em poucas horas, muitos assentos já haviam sido vendidos. Um único contato no país colaborou em concretizar a compra.
O trem sairia da fronteira do país com a Polônia. Não havendo voos diretos, o jeito foi adquirir um voo para Istanbul e de lá para a Polônia. Chegando na capital (Varsóvia), pega-se um trem até a cidade fronteiriça (Przemsyl). Cheguei por volta de três horas antes da partida do trem da fronteira, que sairia 20:30. Na estação, me informaram que eu deveria me encaminhar para a plataforma uma hora e meia antes da partida, considerando que eu precisaria passar pelo controle de imigração uma vez que estaria saindo da União Europeia. ‘Você verá um monte de pessoas’, disse a funcionária da estação. De fato: uma fila imensa estava posta para de entrar na plataforma. Eu era o único da fila que não era ucraniano. Mas detalhe: 90% das pessoas que ali estavam eram mulheres e crianças; uma vez que homens a partir dos 18 anos não podem sair da Ucrânia por conta da convocação (já feita ou não) para o serviço militar dado o contexto de guerra.
Passando a imigração, surge um imenso trem azul, antigo e sem muita sofisticação artística; não é por menos: remonta os tempos da União Soviética. Embarcando, as condições são bem simples e até um pouco insalubres: corredores muito estreitos, banheiro com um odor forte, equipamentos de limpeza espalhados pelos vagões e as cabines sem muito conforto. Seriam 13 horas nessas condições até a capital.
Uma hora depois de partir de Przemsyl, paramos, já em solo ucraniano, em um lugar que parecia uma unidade da polícia de imigração do país, num lugar ermo. Entraram três policiais para coletar os passaportes e fazer uma revista no trem. Quando entreguei o meu passaporte (que, por sinal, é muito semelhante com o passaporte ucraniano), os agentes da polícia se surpreenderam com o fato de eu não ser ucraniano. Fizeram algumas perguntas, dentre elas ‘você não está com medo?’. Respondi todas, sem precisar fantasiar, e os policiais saíram. Cerca de uma hora depois, outros policiais entram com cães farejadores; e são seguidos dos policiais que haviam entrado anteriormente, com os nossos passaportes carimbados. Mais meia hora, o trem seguiu viagem. Houve apenas uma parada, em Lviv, durante a madrugada.
O cenário, durante as treze horas de viagem, era homogêneo: sem grandes cidades, apenas vilas e comunidades rurais. Casas simples, de estilo europeu. Muita vegetação e algumas construções de armazenamento (celeiros, depósitos, etc). Concluí que o país não é, em sua maioria, urbanizado; pelo menos a parte oeste e centro-oeste do país. O cenário começa a ser mais urbano quando faltam apenas uma hora para chegar até a estação de Kiev.
Chegando, uma cena comovente: muitos familiares, principalmente homens, esperando suas esposas e filhos com flores e muita saudade. Saindo da estação, sigo até o hotel que me hospedaria. No caminho, percebo que a vida segue normal, apesar da guerra: trânsito, alta circulação de pessoas na rua, comércio, entretenimento, a vida continua. Chegando no centro da cidade, em frente à Praça Maidan (ou a Praça da Independência da Ucrânia), de estilo soviético, se encontra o Hotel Ukraine; que, apesar da excelente estrutura e localização, o preço se encontra monumentalmente abaixo da tabela, por razões óbvias: eu era um dos pouquíssimos hóspedes que ocupavam 5% das acomodações do hotel. Uma coisa já me chama a atenção: uma placa, no meu andar, com o aviso ‘escada de emergência’ escrito em russo. Guardei esse detalhe e me informei, posteriormente, que a língua russa estava em um grau de banimento que se iniciou em 2019, antes da guerra. Com o conflito, se intensificou o boicote.
Começo o tour pela cidade no Parque Khreshchatyy, um dos pontos mais frequentados pelos moradores locais. Era uma quinta-feira de tarde e o parque estava bem movimentado. No centro do parque, um grande arco metálico com uma pintura preta simulando uma rachadura. Trata-se do Arco da Amizade, colocado em 1982 para simbolizar a amizade entre russos e ucranianos, ainda na Era Soviética. A simulação da rachadura foi colocada recentemente, expressando que a amizade foi quebrada. Embaixo do arco, dois pedestais de concreto que meses atrás guardavam estátuas que também ilustravam artisticamente a aliança entre russos e ucranianos, todos foram removidos.
Saindo do parque, sigo até a parte mais antiga da cidade, nos arredores da Igreja de Santo André: ruas feitas de pedras antigas, muitos restaurantes e lojas de souvenirs, local típico de uma cidade turística. Contudo, sem as pessoas que dão sentido àquele lugar: turistas. Os vendedores de rua, com suas barraquinhas e vendas ao ar livre expressam um ar de tristeza e desânimo. São pouquíssimos pedestres que param para ver suas mercadorias. Praticamente todos os que ali circulam são ucranianos de outras cidades. O que chama atenção são os souvenirs que fazem menção à guerra: canecas, camisetas, chaveiros, bandeiras e outros objetos com dizeres de protesto em ucraniano como ‘Morte para os inimigos russos’. O item que mais chama a atenção é, sem dúvida, o papel higiênico com o rosto de Vladimir Putin estampado.
Saindo da área antiga, sigo para a Praça Mykhailivska, onde são colocados todos os tanques e demais armas militares russas. A área é relativamente movimentada. Muitas pessoas vão para ver de perto as armas mas também para escrever nos destroços dizeres de protesto e orgulho do próprio país. Frases como ‘os russos vão ardes no inferno’ ou ‘maldito Putin’ são muito comuns nas escritas. Ao ar livre, os equipamentos não contam com nenhuma proteção; muitas pessoas sobem em cima dos tanques ou até, encolerizadas, arrancam pedaços deles.
Andando pelas ruas, algo me chama a atenção: a quantidade de homens e mulheres fardados. A maioria, não é militar por profissão. Eram reservistas que foram convocados para prestar o serviço militar por conta do conflito. Muitos transitam pelas ruas mas muitos também sentados, no celular, fumando ou tomando café; sem grandes preocupações ou ocupações.
Voltando para o hotel, a recepcionista me avisa de algo que havia esquecido: de que eu não poderia deixar o edifício depois da meia-noite até as cinco horas da manhã, por conta do conflito. E não era só isso: todos os estabelecimentos comerciais encerravam as atividades até, no máximo, as dez horas da noite. Justamente para possibilitar o deslocamento dos cidadãos até as suas casas, cumprindo o horário da quarentena. Isso é conhecido como ‘lei marcial’, decretada desde o início da guerra, mas com prorrogações, propostas pela presidência do país e aprovadas pelo Parlamento,
Durante a noite, uma surpresa: o som da sirene. A ordem, a princípio era para seguir até o abrigo do hotel. Contudo, preferi tomar uma medida de prevenção dentro da suíte para observar o fenômeno da janela. Não haviam pessoas na rua, apenas policiais que reagiram normalmente com o som. Sem nenhum alarde.
No dia seguinte, desço para tomar o café-da-manhã no restaurante do hotel. Amplo, luxuoso e com uma vastidão de mesas e cadeiras, vazias. Eu e mais dois casais éramos os únicos a ocupar o lugar. Por conta da baixa ocupação, essa refeição era servida de maneira econômica. Sem self-service, os funcionários (apenas duas senhoras) serviam a quantidade suficiente para uma pessoa: pão, croissant, salada, salame e queijo, ovos fritos com bacon, panqueca recheada com geleia, iogurte, suco e café.
Antes de sair do quarto, outra surpresa: novamente o som da sirene. Dessa vez, por volta das dez da manhã. Observando da janela, vejo que o fenômeno não causa, em absoluto, nenhuma reação da população que, a princípio, deveria se encaminhar para a estação de metrô mais próxima. Para eles, ouvir o som da sirene parecia ouvir qualquer outro som. Não havia nenhuma reação. A conclusão é que a vida precisa continuar, apesar da guerra; e que não se a queda de mísseis na região. De modo que as sirenes funcionariam mais como uma medida preventiva, sem tantos motivos para alarde.
No dia seguinte, exploro a região da Maidan e encontro um gramado com centenas de bandeiras da Ucrânia, com frases escritas. Em frente o gramado, dois senhores vendem as pequenas bandeiras e oferecem uma caneta para que se escreva uma frase antes de coloca-las junto com as outras. Compro uma e escrevo uma frase em português de solidariedade para com o povo ucraniano. Feito isso, sigo a pé até um dos cartões postais de Kiev: o Monumento Mãe Pátria, uma imensa estátua de 62 metros de altura, uma das mais altas da Europa, colocada ali também na era soviética. A estátua é uma figura feminina que, em uma mão, segura uma espada e, na outra, um escudo com um emblema socialista-soviético. O triste: não pude me aproximar quase nada da estátua, que fica dentro de um parque, porque estavam sendo realizados trabalhos na mesma. Qual eram os trabalhos? Se tratava da remoção do emblema no escudo (a foice e o martelo), um dos muitos trabalhos de “dessovietização” do país, muito comum nos dias atuais do leste europeu. Checando as notícias no idioma ucraniano, percebi que não era só aquele monumento, músicas e livros russos também passavam por uma intensa censura, nomes de rua e edifícios públicos que outrora foram nomeados com referências russas também estavam passando por reformulação; até a Igreja Ortodoxa do Patriarcado Russo passava por censura.
Voltando para o hotel, pude observar a sexta-feira noturna de Kiev: cidade animada, pessoas dispostas e felizes com o final de semana se iniciando e até apresentações artísticas na Maidan. Era como se não existisse guerra e os cidadãos tivessem todos os motivos do mundo para ser feliz. Muitas crianças brincando ao ar livre, adolescentes passeando de bicicleta ou patinete, casais de namorado e algumas pessoas tirando fotos na praça com todo aquele alto astral.
Durante o final de semana, pude transitar por espaços públicos (principalmente shoppings centers, avenidas, calçadões, etc) para ver a população aproveitando o sábado. Era como se fosse um fim de semana em uma grande metrópole: artistas de rua, stand-up de comédia, casais fazendo ensaios fotográficos para o casamento, jovens flertando, dentre outras atividades. Nenhum som de sirene, apenas o som da cidade movimentada e das pessoas tirando disso razões para ser feliz.
Passado o final de semana, decido visitar o Museu Nacional da Arquitetura Folclórica e da Vida na Ucrânia, um dos maiores museus ao ar livre da Europa. Trata-se de um espaço aberto onde cada área é reservada para ilustrar uma região específica da Ucrânia, com sua arquitetura, estilo de vida, etc. Quando chego, não vejo um único carro no estacionamento e uma única funcionária na bilheteria. Entro e não encontro praticamente nenhuma sinalização e nenhuma alma viva para eu seguir o fluxo da visita. Logo, concluo que terei que caminhar pelas pequenas estradas do imenso terreno e visitar aquele lugar em que me encontrava sozinho. Muitas igrejas de madeira, casas rústicas de madeira e telhado de palha, celeiros antigos, galinheiros, chiqueiros, etc. As igrejas e as casas, em sua maioria, trancadas com cadeados pesados; a manutenção desses lugares não compensa, atualmente, devido ao baixo fluxo do museu. No final do trajeto (não sinalizado) surgem pequenas barracas e tendas: são lojas de souvenirs e algumas lanchonetes. Uma, inclusive, me chama a atenção pelo funcionário, em plena segunda-feira num país em guerra, sem turistas, estar servindo almoço; com churrasco, inclusive. Tenta me oferecer, mas não estava, naquele momento, com apetite para uma refeição.
Nos dias seguintes, pude visitar outros pontos turísticos e não-turísticos de Kiev como o bairro de Comfort Town, o Portão Dourado, a Igreja de São Miguel das Cúpulas Douradas com o mosteiro anexo, a Ópera Nacional, dentre outros lugares. Reparando, percebi muitos edifícios públicos com sacas de areia empilhadas nas portas e nas janelas, proteções contra um possível ataque aéreo. Da mesma forma, registrei inúmeros cartazes, banners, fotografias e grafites com referência à guerra e ironias quanto aos russos e a Putin. Em muitos lugares haviam referências a Zelensky como salvador da pátria ou como herói dos ucranianos; parecia ser um líder carismático e com popularidade em ascensão.
Contudo, não tive acesso à região onde se concentra os edifícios públicos do poder político do país. Havia guaritas, barricadas, sacas de areia, tanques e drones fazendo a proteção dos entornos e dos acessos. Fazendo uma pesquisa sobre o período em que se vetou o acesso à região, encontrei a informação de que foi decretado, pelo poder executivo, que não haverá eleição presidencial, prevista para esse ano, até o fim da guerra. Da mesma forma, no ano passado Zelensky baniu 11 partidos políticos, todos de oposição, suspeitos de estarem em conluio com a Rússia, sem muitas provas para além da atividade opositora.
Chegando o dia de voltar, me dirijo até a estação de trem. Dessa vez, preciso passar toda a minha bagagem por um detector de metais. Feito isso, me dirijo até a plataforma de trem. Ali vejo cenas tristes: muitas esposas e seus filhos se despedindo de seus pais e maridos que não podem deixar o país por conta da convocação militar. Muitas lágrimas e angústia de preocupação. Quando tínhamos enfrentado algumas horas de viagem, eis que o trem faz a parada no intuito da polícia fazer a nossa saída do país. Dessa vez, foram mais inquisidores: muitas perguntas e quiseram revistar a bagagem, sobretudo os medicamentos que havia levado para o país. Apesar disso, tive a saída registrada no passaporte. Seguimos viagem até Przemsyl, onde chegamos no início da manhã.
Chegando, tivemos que enfrentar uma longa fila para todos passarem pela polícia de imigração polonesa. A demora me fez perder o trem para Varsóvia. Apesar disso, a companhia ferroviária me alocou no horário mais próximo. No dia seguinte, me dirigi até a cidade de Gdansk. Meu intuito era tomar um ônibus que leva passageiros até o enclave russo de Kaliningrado, no mesmo dia em que a ex-presidente Dilma Rousseff estava em Moscou com Putin. Tentativa fracassada: chegando no posto de imigração russo, fui recolhido e o ônibus seguiu viagem sem mim. Foram doze horas na fronteira por conta do meu carimbo de entrada e saída da Ucrânia. Era uma possibilidade de isso acontecer, apesar de possuir uma carta do Consulado da Rússia no Brasil e carta de convite de amigos que residem em Kaliningrado. Colocado em um ônibus que estava indo para a Polônia, pude voltar; sem poder conhecer o conflito do outro lado.
Conclusão: apesar da necessária solidariedade para com o povo ucraniano que já perdeu muitos dos seus cidadãos com a invasão russa, parece que ambos os países têm perdido também características democráticas com o conflito.
Por: Victor França
+5512981370501
3 Respostas
Qualquer dúvida sobre o relato, só entrar em contato comigo (:
Muito bem feita a sua narração sobre a experiência na cobertura na Ucrânia. Parabéns pela escrita correta e pela competência, valores tão raros de se observar hoje em dia entre jornalistas e escritores.
Excelente relato. Parabéns.